sábado, 24 de junho de 2017

Tenho 36 anos e sou viúva *


O meu marido foi descansar em janeiro de 2017.
Digo foi descansar, porque acredito que só morre verdadeiramente quando nos esquecer-mos dele. Sinto-o muitas vezes ao meu lado, seja a proteger-me e a indicar o caminho, seja a ralhar comigo quando não faço pisca, ou quando não confiro o troco.
(Sabes como sou distraída, né?)
Tinha 37 anos e eu 36 e apesar de toda a gente nos avisar, ninguém acreditava.
Podiam vir cem médicos dizer-nos a mesma coisa, mas se ele sorria e dizia que tudo isto ia passar, nós acreditávamos nele.
Não me importei de passar o tempo que fosse preciso em hospitais, em quimioterapias, em urgências a tratar da desidratação enquanto toda a gente lá fora vibrava com o golo do Ronaldo e com a vitória na liga dos campeões.
Não me importei de ir sozinha às consultas de obstetrícia.  Ser a única a ver as ecografias da nossa filha, e quanto é que ela estava a crescer. Olhar e ver todas as mães acompanhadas pelos maridos. Pffuf, o meu era o melhor, e o mais forte. Estava internado no hospital, sim. Mas para se recuperar e ganhar forças para ser o melhor pai que alguma vez podia imaginar.
Não me importei de passar o 3º trimestre da gravidez todinho a seu lado, dentro do horário de visitas, e às vezes até fora dele, como foi na passagem de ano. Juntos na cama do hospital até à 1h da manhã. Foi a última vez que ele se levantou da cama e deu uns passos.
As lágrimas escorrem sem eu as conseguir manter. Tenho tentado arrumar estas recordações lá bem atrás, no fundinho da última gaveta, escondidas com as memórias mais alegres que consigo encontrar. Hoje fui mexer na gaveta. Permito-me chorar enquanto escrevo.
Só enquanto escrevo.
E porque não há hipótese de borrar o papel.
Foram dez meses de luta constante. Sem espaço para respirar ou acalmar. Aceitávamos com prazer os efeitos da quimio. Pensávamos que quanto pior se sentisse, mais efeito ela estava a fazer. 
Lutámos sempre com todas as armas que tínhamos, todos os dias, todas as horas. Para nós só podia haver um desfecho. E não era este.
Não tivemos a sorte de passear, nem de fazer amor para nos despedirmos. Nem sequer uma palavra nas últimas semanas.  
Apenas um olhar. Falávamos pelo olhar. 
Fazíamos planos de viajar na nossa autocaravana, as nossas primeiras viagens a 4. Íamos à Disney, já tinhamos o mealheiro quase cheio e o percurso delineado.
A seguir íamos à Feira Popular que vai inaugurar perto da nossa casa, com as nossas meninas. A mais velha a empurra o carrinho da mana, e nós atrás delas, de mão dada. A felicidade de estarmos juntos.
Passaram-se 5 meses. Mas sinto que o perdi há 15. Quando foi diagnosticado.
Tentei "portar-me bem" nas cerimónias. Sem nenhum espalhafato. Acho que consegui engolir os gritos, e o choro. Estava muita gente  a ver, e acho que ele não ia gostar que eu chorasse. Suprimi as lágrimas. 
Não sei explicar, mas o meu escape era o tabaco. 
Geralmente eu não fumo. Mas nesses meses, fumei mais do que em toda a minha vida. 
Irónico, para quem acaba de perder alguém para o cancro. 
Não quero saber. Se morrer, vou para o pé dele. - Era o que pensava. E acendo mais um.
(Continua....)



* inspiração para o meu texto: http://www.delas.pt/viuvez/

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Chegar a casa

....vinda do velório de duas das vítimas dos incêndios, e ler o recado que ela escreveu à pressa para mim, limpa-me a alma:



Foi um ambiente pesado.

Ainda há 4 meses atrás o casal me dava os sentimentos a MIM.

Das muitas coisas que não me consigo lembrar daquele dia, uma não esqueço: o seu olhar, azul e  profundo nos meus olhos. Apaziguou-me. Não sei porquê, senti paz com ela.

Ele, abraçou-me, e disse que eu tinha de ser forte. Ninguém devia partir assim, aos 37 anos de idade. Muito novo.

Foi em Janeiro.

Hoje é Junho... e abraço-a novamente. Continua com o olhar azul penetrante. Transmite calma e, sempre preocupada com os outros, perguntou-me pelas minhas meninas.

Numa infeliz troca de papéis, agora é ela que se está a despedir do marido.

Ele... que partiu com 37 anos!

Foi por tudo isto que, o que eu mais precisava era de acordar a minha filha. Abraçá-la (independentemente do calor que estava), olhar para ela, dizer que a mãe já chegou e adormecer ao seu lado.

Hoje a mãe não vai ralhar para que ela vá para a sua cama.

Hoje vamos dormir de mãos dadas.

Estamos aqui. Está tudo bem.


terça-feira, 20 de junho de 2017

Hoje foi o dia.

Foi uma coisa que me passou à frente.

Assim, de repente.

Enquanto lia os relatos dos que perderam tudo no incêndio de Pedrogão Grande (sem perceber bem qual a dimensão da palavra 'tudo') só desejava poder ajudar.

Mas como?

Fácil.

Há quem não tenha coisas que precisa.

Cá em casa não há espaço. E há roupa.... e sapatos teus, que já não precisas.

Até agora, achava que não fazia sentido desfazer-me das tuas coisas. Ainda podem ser precisas. São tuas. Deixa-as ficar.

Não me importo de sentir uma ferida no coração cada vez que abro a tua gaveta. Sinto-a por ti.

Hoje, achei que fazia todo o sentido serem doadas à terra da tua mãe. Aos descendentes de quem com ela cresceu e brincou.

As coisas acontecem quando têm de acontecer.

Sem me custar tanto como temia, agarrei nas tuas camisas, pólos, casacos, pijamas e sapatos. Afundei a minha cabeça na tua roupa e inspirei o mais fundo que consegui. O teu ar. Pela última vez.

Agora vão. Apanhem boleia dos bombeiros....

Vão para onde façam falta. Onde voltem a ter vida.

Quem sabe até, vão percorrer os caminhos que tu antes percorreste em criança. Seria simpático.

Espero que estejas orgulhoso de mim. Acho que fiz o correto.


Ahhh e sabes que mais?

A casa ficou com mais espaço. :)




sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Para ti, meu pai.

Que partiste hoje.

Que foste descansar para um lugar melhor.

Depois de teres travado uma luta constante a cada minuto, a cada segundo, contra a doença mais injusta que pode haver.

Foste descansar porque, afinal a tua missão estava cumprida.

A tua Felicidade suprema atingida: foste Pai.

Agora já podes descansar.

Obrigada por seres meu Pai.


Ass: MiniMoura

Tenho 36 anos e sou viúva *

O meu marido foi descansar em janeiro de 2017 . Digo foi descansar, porque acredito que só morre verdadeiramente quando nos esquecer-mos...